«A arte parasita a vida, tal como a crítica parasita a arte.»
Harry S. Truman

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Cisne Negro (2010)


Darren Aronofsky, juntamente com Gaspar Noé, Lars von Trier e Michael Haneke é um dos melhores cineastas independentes desta geração. Do conjunto, o seu cinema sempre se revelou, na falta de melhor expressão, o mais acessível e humanista.

Esta faceta sempre trabalhou a seu favor: a condição humana nos seus filmes, apesar de retratada com crueza, é também destilada com menos bílis que os seus colegas. Para Noé, Trier e Haneke, os protagonistas são cordeiros sacrificiais, a lançar na bocarra de um universo absurdo e cruel, para efeitos de estudo; para Aronofsky, eles são criaturas doentes e condenadas, cuja perdição se filma sem pestanejar, mas com compaixão. Contudo, Cisne Negro marca uma encruzilhada para o realizador: pois é simultaneamente o seu maior sucesso até à data, e a sua obra menos genuína.

Partir para ficar

Nina (Natalie Portman) é uma bailarina clássica, que se depara com a oportunidade de uma vida, ao ser escolhida para uma nova interpretação do Lago dos Cisnes de Tchaikovsky. Ela é uma criatura frágil, assustadiça, mas trabalhadora, disciplinada. Contudo, o encenador, Thomas (Vincent Cassel), pretende que ela encarne os dois papéis que constituem o cerne do bailado, isto é, o Cisne Branco e o Cisne Negro. Nina, fraca e frígida, como Thomas a caracteriza, nasceu para ser o Cisne Branco; mas o Cisne Negro, sensual, assertivo e manipulador, esquiva-se aos seus esforços para o ater.


À medida que a data da estreia se aproxima, Nina sofre uma transformação gradual. É para ela um processo doloroso, mas fértil. Pois ela é um ser inteiramente passivo: para que indivíduos como Nina se elevem acima da sua condição, para que se emancipem e encontrem a sua voz, são necessárias circunstâncias excepcionais. Para ela, não se trata de ganhar ou perder, mas sim de sobreviver ou ser destroçada. Poderá tentar tocar o sol, e sofrer o destino de Ícaro. Mas atrás de si, encontra-se um negro vazio, um pântano assustador. Retornar à vida anterior seria impensável. Ser e deixar de ser é sempre melhor que retornar ao nunca ter sido. Todos os filmes de Aronofsky lidam com protagonistas a caminho da dissolução, mas sempre na demanda de algo mais que a vida mundana.


Nina vive com a mãe (Barbara Hershey) num velho apartamento, o omnipresente apartamento aranofskiano, filmado como só ele sabe, e onde a maior da população humana passa as suas vidas: cubículos sufocantes, caindo aos bocados, imersos em penumbra, onde a luz entra por frestas. Aronofsky filma os seus apartamentos como se fossem claustros. A mãe é uma bailarina falhada, carinhosa, mas também doentia e abusiva. O pai é uma figura ausente. Do universo das outras bailarinas, destaca-se uma recente adição à companhia, Lily (Mila Kunis). Ela é solta, forte e liberta, e chega a procurar inclusive a sua amizade. Nina reage aos seus avanços com um misto de curiosidade e paranóia, vendo nela, simultaneamente, um modelo e uma rival, uma usurpadora.


Thomas (Vincent Cassel), o director artístico, é o típico génio ególatra, franco e cru, mas também charmoso, implacável. A antiga prima ballerina da companhia (Winona Ryder), agora caída em desgraça, faz as vezes de prenúncio da tragédia que se avizinha para Nina. No papel, parecem-nos estereótipos, e são: este é o primeiro sinal de que algo está errado. Mais um pouco, e Aronofsky teria conseguido, como nos seus outros filmes, tornar os estereótipos em arquétipos; graças ao seu toque humano, as personagens evitariam tornar-se meras ideias, veículos inertes para conceitos. Isto só não assume uma dimensão desastrosa em Cisne Negro graças à total fusão de Natalie Portman com o seu papel, muito em linha com o que Mickey Rourke fez em The Wrestler, e também graças aos esforços do restante elenco.


É uma galeria diminuta de personagens, mas cada uma exerce uma influência sobre Nina, enquanto Nina não exerce influência sobre ninguém. Ela terá de usar essa pressão externa para se poder enfim libertar. É essa a grande cartada das criaturas frágeis: quando atiradas para a fornalha, ao invés de arderem, por vezes moldam-se, como o vidro, em fantásticas criações. Assim, ela não deve somente ater o Cisne Negro: deve tornar-se nele, renascer, arrancar-se à força do seu próprio útero. Como a sua personalidade não possui força suficiente para este acto o inconsciente, inicia a destruição sistemática da sua persona, de modo a que algo de novo possa emergir. Nina prossegue nesta via de risco, por fraqueza, por ambição, mas também por um profundo desejo de mudança.


O final coloca-nos ainda essa questão. Nina, a estrela, triunfa; mas poderemos dizer o mesmo de Nina, a pessoa? Aronofsky deixa-nos decidir por nós. Mas, no corpo da sua obra, encontramos uma correspondência omnipresente com esse dilema. No sorriso de Nina, deitada no chão, sorrindo, vemos vestígios de Jennifer Connely em Requiem for a Dream; de Pi, com o protagonista mirando no fim as árvores; de The Wrestler, com Mickey Rourke preparando-se para aplicar o seu último golpe. Aronofsky larga-os de sorriso na cara a meio (ou no final) de uma espiral descendente. É de uma ironia humana e agridoce.


Em todos estes filmes, cada personagem busca a felicidade, embora mormente através de uma mutilação do Ser. Nisto Aronofsky junta-se a uma longa tradição de realizadores americanos, e da sua exploração do mito do sonho americano. Apenas em The Fountain o protagonista consegue obter uma transcendência real e definitiva: é o único que consegue destilar algo de verdadeiramente positivo da tragédia que o acomete. O Cisne Negro encontra-se a meio caminho entre The Wrestler e The Fountain. Nina tanto poderá acabar como Randy ou como Tomas. O salto da plataforma, no clímax do bailado, emula perfeitamente o salto final, mas para o ringue, de Randy. Como Randy, a vida profissional de Nina é tudo o que ela tem, tudo o que ela sabe fazer. Contudo, haveria em Nina ainda um desejo de seguir em frente, de se libertar, de evoluir. Nina é jovem e Randy é um velho acabado: é tarde demais para ele, mas talvez não para Nina.



O Patinho Feio de Aronofsky

Quando se atinge o calibre de que Aronofsky goza, as influências devem assumir uma posição cada vez mais subtil na palete do artista; caso contrário correm o risco de serem denunciadas como furto. Com Cisne Negro, Aronofsky cai prisioneiro da vertente referencial do pós-modernismo, da qual Tarantino é o mestre incontestado. Mas enquanto em Tarantino a apropriação de fórmulas e imagens alheias é o método criativo em si, em Aronofsky tal processo de reciclagem indicia e faz-nos suspeitar de falência artística. Em Tarantino, a referência é sempre homenagem lúdica; em Cisne Negro, a referência nem o chega a ser, é meramente expropriação. Tarantino é o marido abusivo, mas que ainda ama a esposa e os frutos dessa relação. Aronofsky aqui é muito simplesmente um proxeneta.

Comecemos pela instância mais evidente: Perfect Blue, do qual Aronofsky comprou inclusive os direitos. Enquanto que para os restantes exemplos podemos falar especificamente de influências esparsas ou meramente estilísticas, aqui Perfect Blue constitui mais que isso: ele é o molde narrativo do qual se fabricou Cisne Negro.

Perfect Blue
A latência sexual de Nina e a sua relação com a mãe remete imediatamente para La Pianiste de Haneke, mas sem a coragem chocante deste, sem a sua franqueza incómoda. Podemos inclusive falar de uma versão light de La Pianiste. Aqui, a ambiguidade é usada para disfarçar, ao invés de realçar.

La Pianiste
De resto, há que referir que as cenas de sexo no Cisne Negro são filmadas de uma maneira totalmente gratuita, não no sentido moral, mas mercantil. A cena em que Nina se masturba merecia figurar mais num episódio da Letra L do que num filme deste carácter. O traseiro embelezado, coisificado, sanitizado e polido de Natalie Portman neste filme é como a cena de penetração real em Os Idiotas de Trier, isto é: um momento de arrojo transformado em facilitismo comercial, em traição artística.


A referência a The Red Shoes é batida, mas há que fazê-la, pois que é uma influência de peso, para sempre vincado como o arquétipo dos psicodramas sobre dança. É curioso que se critiquem as cenas de dança de Natalie Portman. Não se podia ter exigido mais dela, apesar do uso de duplos, mais do que obrigatório, aliás. Seria ridículo exigir que ela se tornasse uma bailarina profissional da noite para o dia. Contudo, é um dos pontos fracos do filme, apesar dos esforços do realizador. E Aronofsky cria uma situação inteiramente artificial, colocando uma criatura tão passiva no topo de um mundo ultra-competitivo. Estes pontos poderão destruir a magia para entendedores do meio. Curiosamente, Moira Shearer, a estrela de Red Shoes, veio do mundo da dança para o cinema, e nunca ligou muito a este último; mas, ironicamente, o filme destruiu-lhe a carreira de dançarina.

The Red Shoes
A cena na discoteca traz imediatamente à memória Gaspar Noé, embora neste caso haja mais correlação de estilos do que expropriação. Existe ainda a sombra de Lynch e de Cronenberg, que aqui emergem como referências directas. Só para dar dois exemplos: a sequência em que Nina tropeça às escuras no auditório, e se depara com Thomas e Lily, lembra por demais outra certa sequência com Laura Dern em Inland Empire. Já a transformação física de Nina no Cisne Negro transporta-nos imediatamente para o universo da metamorfose carnal de Cronenberg. Aronofsky sempre conseguiu imprimir um cunho pessoal ao físico, e sempre o tratou de maneira mais crua e "real" que Cronenberg (veja-se The Wrestler). Mas aqui, ao ver a pele que se descola dos dedos, os pêlos arrancados à carne, como não pensar em A Mosca?

A Mosca
Cisne Negro
Seguindo esta linha, outro ponto fraco do filme são os efeitos especiais. É natural que assim seja: aliás, é incrível que Aronofsky consiga sequer fazer estes filmes com os orçamentos ridículos que lhe disponibilizam. Mas os efeitos. Sim, os efeitos são maus, de tal modo que chegam a despertar o riso, como na cena em que as pernas de Nina se retorcem, ou o seu pescoço se alonga. No que toca a metamorfoses, está muito longe dos efeitos do supra A Mosca, de An American Werewolf in London ou de um The Thing. A transformação final de Nina, em palco, é a um tempo bela e pirosa. Ainda estamos muito longe de um cinema independente com efeitos computadorizados credíveis.   

An American Werewolf in London
Ademais, a questão coloca-se: seriam estes efeitos realmente necessários, apesar de estarmos a ver as coisas através do olhar de Nina? Aronofsky quis efectuar uma fusão entre o conto de fadas e o retrato psicológico, mas não dispôs de tempo para realçar nem um nem o outro, e para complicar as coisas, as duas modalidades são quase antinómicas: o conto de fadas é uma simplificação universalista, uma súmula moral, enquanto que o retrato psicológico é um aprofundamento individualista, e normalmente complexifica, ao invés de linearizar. O conto de fadas condensa, o retrato psicológico expande.  


É por isso que, pretendendo formar um compósito das duas modalidades, Aronofsky acaba por tratar a condição mental de Nina de maneira redutora. Os trejeitos de Portman, o seu olhar tremeluzindo, fazem mais para nos revelar o seu inferno interior que quaisquer efeitos especiais. Gostaria de ter visto um maior ênfase na evolução do comportamento de Nina, pois que a personagem (todas, aliás) é rica em material. Ao invés, somos bombardeados com simbologia barata, e metáforas batidas: o tema do Duplo, o maniqueísmo entre o lado negro e o lado branco, etc. Paradoxalmente, o filme esforça-se demasiado para nos demonstrar esses corolários simples. Parece ser, infelizmente, uma tendência do cinema actual (senão veja-se Inception).

Aquilo que Ingmar Bergman nos mostrava de maneira tão subtil (a desconstrução e colapso da persona), Aronofsky aqui enfia-nos pela goela abaixo à martelada. Nisso é igual a Trier e o seu Antichrist. E ambos partilham ainda outro defeito grave: no último terço da narrativa, no acto final, entram no território formulaico do género, neste caso, o thriller de horror. Aí, ironicamente, perdem todo o vapor, pois eles são claramente piores realizadores de género que qualquer mediano artesão do terror. De um leque de possibilidades narrativas quase infindável, que é a marca do cinema artístico, afunilaram-se no beco sem saída e sem lustre do género.


Em última análise, a expressão "manta de retalhos" resume perfeitamente Cisne Negro, mas eu possuo outra metáfora para lhe apodar, esta mais convulsa: ele é como um daqueles quadros da oficina de Rubens, pintados pelos aprendizes, e no qual o mestre só dava umas pinceladas de acabamento; e neste caso, é como se os aprendizes copiassem outros mestres que não o próprio Rubens. Espero com agrado pelo próximo filme do realizador, mas repito-o, o que queremos ver num filme de Aronofsky é Aronofsky. Podemos perdoar quase tudo ao verdadeiro artista, menos o não ser ele próprio.


Ficha técnica: Cisne Negro na IMDB.

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