«A arte parasita a vida, tal como a crítica parasita a arte.»
Harry S. Truman

sábado, 18 de junho de 2011

Glengarry Glenn Ross (1992)


Poucos temas tiveram tal ascendente sobre a ficção provinda dos EUA como o chamado "sonho americano". Este emergiu da necessidade inconsciente de um país jovem, em franco crescimento, de formar a sua própria identidade cultural e ética. Da Declaração de Independência à tarte de maçã, da Stars and Stripes à conquista do Oeste, o imaginário norte-americano, embora bebendo de várias influências, é sui generis, de um charme e carácter muito particulares

O american way of life, para alguns espíritos desatentos, prende-se primariamente com a obtenção de riqueza material, da ascensão de posto social, do sucesso e da fama a todo o custo, de uma grandeza barulhenta e farsolas. Nos dias que correm, é difícil não o reduzir a isso. Contudo, as suas raízes são de cariz mais nobre, e espiritual. Em The Treasure of The Sierra Madre, faz-se precisamente essa distinção, de modo exemplar: do trio de protagonistas, apenas a personagem de Humphrey Bogart segue obstinadamente esse ethos, e a sua ganância acaba por ser punida.

No cinema, o cowboy e o gangster revezaram-se a pintar de maneira vivaz o mito do self-made man. O género noir já planta, contudo, as sementes de uma desconstrução crítica do mesmo. Desenvolve-se o embrião do falhado, essa sombra, esse duplo do homem de sucesso. Irmãos de sangue, nunca deixarão de fascinar e prender a atenção dos norte-americanos. O herói trágico entra na segunda fase da era moderna mais humano, democratizado. A sua pequenez, a trivialidade dos seus obstáculos, o vácuo da sua existência, em comparação com os heróis trágicos clássicos, exercem sobre nós um efeito paradoxal: comovem-nos, convencem-nos. Orestes e Édipo são universais, mas o Terry Malloy de On the Waterfront, o Ed de Deliverance, o Kowalski de Vanishing Point, o Michael de The Deer Hunter são como cada um de nós. E entre os anti-heróis mundanos, poucos emergiram na psique americana tão bem definidos como o vendedor, o salesman. 

Por este caminho tortuoso chegamos a Glengarry Glenn Ross. Baseado numa peça de David Mamet, com argumento do mesmo, segue os afazeres de uma agência imobiliária de cariz duvidoso, e dos peões que obram o seu trabalho sujo. O escritório onde operam tem um aspecto modesto e fica localizado numa parte menos respeitável da cidade. O cerne das suas operações consiste em tentar vender lotes de terreno apetecíveis na solarenga Florida, a quaisquer almas ingénuas que mordam o isco. Os terrenos, como seria de esperar, não passam de troços inabitáveis de pântano. 


A sua técnica de venda passa por fazer chamadas a frio, ou visitar pessoas nos seus lares e importuná-las. É o chamado push, um método de venda baseado numa perseguição agressiva de cada venda individual. Nos dias que correm, viu-se suplantado pelo pull, que visa atrair os clientes ao produto. A publicidade custa milhões às empresas, mas também lhes permite matar milhentos de coelhos com uma só cajadada. É um toque estratégico genial: fazê-los vir até nós. Na era da sedução instantânea, do consumismo leviano, nada mais fácil. Há um fosso abismal entre o escritoriozeco de Glengarry Glenn Ross e a Apple, com as suas hostes de fãs acampadas à porta das lojas, esperando o lançamento de um novo produto. (A série Mad Men explora esse mundo no seu estado embrionário.)
 

No escritório, as coisas não correm bem. A sede central parece irritada com o desempenho da sua sucursal, chegando ao ponto de lhe enviar um representante, Blake, para debitar um ultimato. Tal papel coube a Alec Baldwin, naquele que é sem dúvida o melhor momento da sua carreira, num discurso de antologia. Este Blake, com o seu Rolex e BMW estacionado à porta, é como o Dobbs de Bogart: uma deturpação do sonho americano, uma cópia forjada do mesmo. Os seus argumentos são falaciosos, o seu sucesso uma fachada; mas à lógica ele contrapõe força bruta, à indignação contrapõe o estatuto, a hierarquia. A empresa havia estabelecido um concurso: quem vendesse mais, ganharia um carro. O segundo lugar ganharia um conjunto de facas de cozinha (um objecto hiper-real: a sua colocação parece ridícula e assimétrica, e contudo, totalmente realística). Agora Blake introduz um terceiro incentivo: quem vender menos, será despedido. 


Introduzamos os restantes intervenientes, pois que não são muitos. Shelley Levene (Jack Lemmon) é um vendedor de idade avançada, que já viu melhores dias. A sua grande tragédia é ter tido um auge. Os seus métodos são antiquados, já não resultam com a nova geração de consumidores, mais cínicos e cautelosos. O mundo que habita é uma meritocracia amnésica: aí, uma vez que se deixem de produzir resultados, retorna-se à nulidade, atinge-se a obsolescência. 

Levene recusa-se a aceitar esta mudança de estatuto: como o Willy Loman de Death of a Salesman, não quer acreditar que homens como ele existam ao pontapé, que as suas conquistas sejam tão facilmente esquecidas, que uma vida inteira de labuta possa não valer um chavo. E como Loman, Levene mantém uma fachada de autoridade, tenta fazer valer o seu historial dentro da empresa, evoca um passado glorioso de modo a encobrir os seus falhanços actuais. Há nele um desespero, uma urgência, que despertam a simpatia, mas acabam por redundar no ridículo e na falência moral. O que Levene é, no fundo, é um has-been, um já-foi-alguém, essa amada variante do falhado. E por detrás da sua fachada de sorrisos, esconde-se uma prima donna senil. 


Ricky Roma (Al Pacino) é o figurão do sítio. Relativamente novo, possui todas as qualidades que admiramos num líder: carismático, sedutor, capaz, senhor de si, impassível por norma, agressivo e imponente quando necessário. Táctico, tenaz, leonino: ele é a criatura maquiavélica por excelência. Roma é literalmente o sucessor de Levene, e parece encaminhado para se tornar outro Blake. Quando tenta aliciar um novo cliente, os seus braços gesticulam com vivacidade; mas as suas mãos pendem, moles, delicadas, suaves como as de uma mulher. É esse o seu segredo, que é também o segredo do ilusionista. Ele é a um tempo másculo e efeminado, uma criatura andrógina e misteriosa, adaptando-se a todas as situações, sem nunca se apagar a si mesmo. Pelo contrário: a sua arte consiste em ofuscar a vítima.


Williamson (Kevin Spacey) é o chefe do escritório,e sofre todo o tipo de abusos da parte dos seus subalternos. No papel, poderíamos tomá-lo por um homem sem carácter, sem espinha dorsal. Por mais que uma vez, ele revela-se inepto, e pouco carismático. Mas Spacey empresta-lhe uma força subtil: o que de início nos parece mera passividade, acaba no fim por se assemelhar a uma forma de pachorra estóica. Ele é o perfeito burocrata: à volatilidade dos vendedores, ele opõe um rigor de procedimentos férreo. As regras, como com todo o homem domesticado, são a sua coragem; as responsabilidades mundanas, o seu heroísmo.


Moss (Ed Harris) e Aaronow (Alan Arkin) completam o grupo. Vemo-los quase sempre juntos, não apenas por uma questão de praticabilidade cénica e narrativa: há ali uma complementariedade de carácteres, por força do contraste. Ambos são falhados consumados: não podem entrar em decadência, como Roma ou Levene, porque nunca tiveram um auge. A sua mediocridade une-os. Aaronow é passivo, balbuciante: Moss é efusivo, mas age pouco; prefere queixar-se de tudo, encontrando em Aaronow o vazão perfeito para o seu ego azedo. Aaronow é uma mosquinha-morta; Moss o cão que ladra e não morde. Quantos homens eu não conheci assim? Juntos, eles representam a quase totalidade da Humanidade. Estão em clara demarcação de Roma ou Levene: estes são lobos solitários e tenazes.


Mamet parece nutrir um interesse particular pelos desafios que a cultura masculina apresenta, se despida até à sua essência antropológica. Trata-se de uma área - estranhamente - pouco explorada, exceptuando os habituais estereótipos de indulgência juvenil,  onde se expõe o homem-mito, e não o homem-criatura. O ideal do herói másculo foi  trabalhado até à exaustão, mas é tão genuíno como o modelo artificial da mulher que Sex and the City tenta vender. A figura do indivíduo (mais que o homem), também já sofreu abundantes análises, mormente em solitária luta contra o mundo (sistema, sociedade, estado, etc.). O que é raro é uma exploração crua da própria masculinidade, e da dinâmica entre membros do sexo masculino, sem os antolhos de mecanismos escapistas: isto é, o companheirismo heróico, antagonismos maniqueístas, desafios e catarses pueris.


Em Fight Club e American Beauty, a questão é amenizada, tornada quase inócua. Ambos os filmes usam o "pressuposto juvenil" do tratamento da masculinidade. Os seus protagonistas são como adolescentes: primeiro a revolta, de um niilismo lúdico, e no fim o reencontrar da maturidade e das responsabilidades da vida adulta. Em Glengarry Glenn Ross, a masculinidade não é uma via de emancipação ou de fuga: é um mecanismo inerente à sobrevivência, essencial num mundo hobbesiano, onde o homem é o lobo do homem. Daí que Blake equacione masculinidade com sucesso: no mundo moderno, sobreviver é triunfar materialmente. Os fracos sucumbem, os fortes triunfam. O fraco é, assim, traduzido no falhado. Fight Club tenta oferecer uma alternativa a esta correspondência implacável entre as leis da natureza e as leis da sociedade; mas a maneira como materializa essa alternativa é forçada, demasiado cândida. Fight Club e American Beauty tornam-se, a partir do momento em que o protagonista abandona o seu emprego, fantasias, contos-de-fada para adultos: Glengarry Glenn Ross, em que todos se tentam agarrar desesperadamente ao mísero emprego que têm, é um pesadelo bem real.

Diz-se que Baldwin se baseou no Patton de George C. Scott para moldar o tom do seu discurso. E deveras, se um dos homens no escritório não aguentasse a pressão e começasse a chorar, quase que imaginamos Blake chegar ao pé dele e assestar-lhe um tabefe. De resto, nada mais verdadeiro que este auto-retrato egomaníaco do corpo empresarial: um corpo que, instaurado o domínio absoluto do capitalismo, se dá ares de nobreza marcial, comparando o mercado a um campo de batalha, equacionando vendas com operações militares, lendo e absorvendo A Arte da Guerra ou O Livro dos Cinco Anéis com pompa e pedantismo. O empresário quer-se, simultaneamente, um Don Juan, um general, um guerreiro, e um guru.


A linguagem aqui utilizada, as obscenidades, não são artifícios de moda, como em Fight Club - são armas contundentes, e válvulas de escape para uma violência sempre prestes a materializar-se. As interpretações tradicionais apontam que os protagonistas de Glengarry Glenn Ross representam uma distorção da verdadeira masculinidade e do sonho americano. Pelo contrário: o conceito cultural de masculinidade e o sonho americano é que são distorções do estado de natureza. A essência do emprego não é em si artificial, porque é uma continuação do estado de natureza por outros meios, uma prossecução da dinâmica de dominação e de sobrevivência. O próprio James Foley compara esta sua obra a um documentário sobre a vida animal. Foi esse o primeiro pensamento que me acossou, também, sobre o filme em geral. Sempre fui da opinião que quem visionar um documentário sobre primatas ou leões em estado selvagem ficará a saber mais sobre a natureza humana do que se lesse um tomo de filosofia. 


Foley mostrou-se reticente em pegar neste projecto, pois não via como torná-lo em mais que uma peça de teatro filmada. Mas graças a um uso inteligente de enquadramentos e de movimentos de câmara, e de outros artifícios estilísticos, conseguiu lograr um ritmo e uma atmosfera estética genuinamente cinematográficos. Mamet, de resto, incluiu alguns extras na adaptação: uma delas é a cena de Baldwin, e custa-nos a imaginar um Glengarry Glenn Ross sem ela. Na transição difícil do teatro para o cinema, suplanta à larga as adaptações do Death of a Salesman de Arthur Miller (das várias iterações deste, a mais interessante talvez seja a que figura Dustin Hoffman e John Malkovich.) 

Death of a Salesman (a peça) é, de resto, um parente próximo de Glengarry Glenn Ross, fazendo talvez as vezes de mentor. O primeiro é de um realismo humano: é como uma tragédia romântica. O segundo é hiper-real, grotesco. Sim, grotesco descreve-o na perfeição; pois o que é o grotesco, senão a realidade esmurrando algum pobre diabo na cara, até causar repugna no espectador? Hipérbole, portanto, do coração, e hipérbole cerebral: ambas as obras usam o exagero, não para atingirem o ideal, mas para dele se afastarem, alcançando assim a verdade. E a verdade desvela sempre a realidade.


Mas o verdadeiro progenitor de Glengarry Glenn Ross é sem dúvida Salesman dos irmãos Maysles. Está lá tudo: o sermão invectivo e pedante do chefão, as posturas de pacotilha, a farsa, a ignomínia, a ambição, a vanidade, e por fim, a decadência e o desespero. Shelley Levene é Paul Brennan. O estupro e desmembramento do sonho americano, filmado com uma aridez totalmente transparente.  

Em Glengarry Glenn Ross, a chuva cai incessantemente naquele pequeno troço de Chicago, entre o escritório e o restaurante chinês. Enquanto toda aquela gente saltita de um lado para o outro, submetida à troça das intempéries e aos escarros da sina, acabamos por pensar: o que fazem estes homens aqui? É de loucos. Mas nós próprios somos como eles. Esta hipérbole mametiana não pretende ser um espelho, mas um retrato: ao contrário do espelho, não nos devolve o que colocamos à sua frente, mas antes a verdade íntima do indivíduo. Podemos escondê-lo em algum velho sotão, como Dorian Gray fez, mas não o podemos iludir.

O filme tem um início, e uma conclusão, mas a história destes homens prossegue, tal como havia precedido os eventos dessa noite. Nenhum deles é inteiramente um vilão: são inquestionavelmente humanos. Por certo que a filha de Levene o ama, por certo que a família de Williamson anseia o seu regresso a casa todas as noites. Aaronow não parece ser má pessoa, e Moss, apesar da sua amargura, é sociável. Roma tem o seu quê de empatia genuína. Mas uma camisa, tendo somente uma nódoa, é mesmo assim uma camisa suja. Tanto na natureza como na moral não existem transigências. As nódoas da alma, depois de secas, nunca mais saem.



Ficha Técnica: Glengarry Glenn Ross na IMDB.