«A arte parasita a vida, tal como a crítica parasita a arte.»
Harry S. Truman

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Último Tango em Paris (1972)


Discutir o Último Tango em Paris exige, de certo modo, também uma discussão paralela, intersticial, da história hodierna do cinema, e dos próprios intervenientes no filme. Este, aquando a sua estreia, foi prontamente banido em vários países (incluindo Portugal), e produziu tanta comoção como lucro. A famosa crítica de Pauline Kael no The New Yorker anunciava então a alvorada de uma nova era para a sétima arte. Mas, decorridas que estão algumas décadas, deparamo-nos com uma paisagem cinematográfica que se esquivou de maneira hábil e trocista ao messianismo de tais arautos.

Pouco se poderá acrescentar ao que já foi dito por Kael, por Roger Ebert, ou na análise publicada na Time. Mas a esse sólido corpo de crítica, gostaria ainda de, humildemente, afixar observações da minha lavra.

A abertura do filme justapõe dois quadros de Francis Bacon, representando um homem e uma mulher. Emparelhados com o saxofone de Gato Barbieri, oferecem-nos a sinopse perfeita do que nos aguarda, tanto estilistica como tematicamente. O enredo concerne Paul (Marlon Brando), um americano de meia-idade que fez de Paris o seu lar, e a sua relação com Jeanne (Maria Schneider), uma rapariga com idade para ser sua filha, como se costuma dizer. Ambos se deparam um com o outro, no início, no interior de um apartamento vazio, sem se conhecerem.


Deste encontro aleatório brota uma sequência de sexo espontânea e feroz. Já então as peças de xadrez estão dispostas sobre o tabuleiro; revendo o filme, notando a atitude tanto de Paul como de Jeanne nessa primeira cena, chegamos à aterradora consciência dessa semente de fatalismo, da qual não poderá brotar nada de fortuito. O desacerto temporal entre estas duas criaturas, a ironia no timing do seu encontro, lembram outra obra que se debate com a mesma intransigência trágica das oportunidades perdidas, Summer and Smoke, uma adaptação da peça de Tennessee Williams.

O filme decorre dentro de um universo determinista e predestinado, mas o engenho de Bertolucci permitiu que nesse labirinto selado o ser humano se comportasse como verdadeiramente é: uma máquina regida por leis imutáveis, acorrentada ao passado, mas capaz ainda das mais variadas momices, caprichos, e devaneios. Bertolucci sabiamente concede que o prisioneiro aja dentro da sua cela como se fosse livre. Essa ilusão de liberdade é carregada por ambos os protagonistas. Jeanne decide ficar por perto deste homem desiquilibrado e soturno, seguindo a sua curiosidade hedonista sem ponderar consequências. Quanto a Paul, exige que se passem a encontrar unicamente no apartamento, sem partilharem um com o outro pormenores da sua vida pessoal. Nem mesmo nomes serão permitidos; e a própria linguagem, inicialmente, é encarada como um fardo detestável. Ele julga assim poder criar o seu próprio mundo, a partir do nada, segundo os seus preceitos. Dentro dessa bolha estanque, eles poderão libertar-se dos antolhos do conhecimento e da memória.


Isto é, claro está, um logro: em verdade, a nenhum homem é dado o poder de construir a sua prisão. Poderá ocupar a sua cela, ou tentar evadir-se dela, eis tudo. Quando muito, constrói uma prisão dentro de uma prisão, um débil simulacro para se enganar a si próprio, como o herói daquele conto de Leonid Andreiev, O Homem Que Encontrou a Verdade. Os nossos infernos pessoais apenas podem ser conjurados; nunca os criaremos a partir do vácuo da nossa vontade, porque isso implicaria o poder de os destruir. Assim, limitamo-nos a esconjurá-los debilmente para algum negro éter, de onde poderão regressar a qualquer instante. Mais tarde, compreendemos o que levou Paul a tais extremos: o suicídio da sua esposa, e, a um nível mais geral, toda uma vida desperdiçada. À primeira vista não o parece: estamos perante Marlon Brando, afinal, e o próprio Paul é um homem dos sete-ofícios que viajou pelo globo, demorando-se nos locais exóticos da praxe, o arquétipo do aventureiro romântico. E Paul, no fundo, é mesmo esse romântico: Brando e Bertolucci fazem dele um romântico realístico, isto é, que já levou a sua conta de surras da vida, e que agora coxeia na sombra, como um velho cão lambendo as suas chagas.

Jeanne é o oposto de Paul em quase tudo, menos no carácter fundamental da sua existência. Poderíamos ater-nos a um jogo de contrastes óbvio, dizendo que Paul está possesso pelas forças da morte, enquanto que Jeanne representa a vida. Mas a meu ver, ambos são criaturas estéreis. Uma filha típica da alta burguesia, ela é simultaneamente inocente e decadente. Fruto de uma infância acarinhada, pontuada pela presença de uma figura paternal heróica, ela floresce num ser culto, emancipado, vivaz; mas também frívolo, oco. Já a infância de Paul foi de outra cepa: a sua descrição da mesma tem contornos faulknerianos, e encontramos nela a mesma miséria e mesquinhez sufocante que num Luz em Agosto.


Face ao que decorre no filme, aos abusos a que ela é sujeita, muitos se interrogaram sobre a passividade de Jeanne. A maior parte prefixa as suas explicações com o estigma do sexismo. Sexismo, porque misoginia seria um termo demasiado forte, e ridículo no caso de Bertolucci, que até parece nutrir um interesse especial por mulheres na flor da idade (que homem não o faz?): veja-se Stealing Beauty com Liv Tyler, e The Dreamers com Eva Green, a título de exemplo. Mas olhemos para o comportamento de Jeanne perante o seu noivo: ela é assertiva, responde com brio à exploração cinematográfica da sua pessoa, ensaia amuos, e chega mesmo a partir para a agressão. O desenlace dessa agressão poderá parecer-nos típico, mas não sejamos tão cínicos: acima de tudo, ele é humano. Jeanne é uma criatura plena de vida, mas enfadada, e carregando consigo todo o orgulho e defeitos da classe média-alta. Disso ela não se consegue libertar, tal como Paul não se consegue libertar dos espectros da miséria sulista. No apartamento, através da sua relação sórdida, tentam combater o tédio existencial que os leva de nariz pela vida, em jeito de troça.

Paul parece apostado em atingir um estado primevo, omitindo o racional no "animal racional". A uma luz mais positiva e cândida, poderíamos dizer que Paul pretende regressar ao estado da criança, de tabula rasa, isto é, a uma espécie de reencarnação ainda em vida, que lhe permita recomeçar tudo de novo. Mas a sua criança em nada se assemelha à metamorfose final do ser humano de que nos fala Nietzsche; não se trata da criança-sábio (como a Starchild de 2001: A Space Odissey). Não é uma progressão, mas antes uma regressão. Uma fuga à dor. Assim sendo, o exorcismo dessa dor não se pode ficar pela mera redução de si mesmo: ele deve reduzir também o Outro, por via da crueldade. E essa crueldade é, precisamente, como a dos animais e das crianças. Não é o primordial que ele atinge, apenas o primitivo. Paul pretende instaurar um reino de igualdade entre quatro paredes, mas essa igualdade deve partir do ponto mais baixo.


Aos poucos, a dinâmica de poder inerente às relações humanas retoma o seu curso habitual. Ambos os protagonistas conseguem demonstrar passividade e assertividade: é apenas momentaneamente que as necessidades interiores e exteriores requerem que Paul seja o ser assertivo, e Jeanne a criatura passiva. No terço final do filme, essas necessidades transmutam-se nos seus opostos, e depois, viram novamente a casaca: é Paul que procura Jeanne, que lhe oferece o seu amor. Mas Jeanne, ironicamente, já não quer Paul. Paul persegue-a então, assertivamente, e Jeanne foge, passivamente. Por fim, Jeanne reage, e Paul acolhe manso o desenlace. A meada do poder remexe-se no tear do destino.

A degradação dentro do apartamento não resgata Paul do desespero; mas cá fora, o amor não o redime também. Antes, é uma fraqueza irreparável, que o mundo não lhe perdoa. O ideal romântico termina fora do espaço fictício do apartamento, em contacto com o espaço artificial do mundo externo. Entre paredes, Paul corresponde ao modelo do homem de meia-idade durão, na plenitude dos seus poderes sobre o sexo oposto; cá fora, não passa de um velho acabado, que dentro de «dez anos estará numa cadeira de rodas», ostentando uma «próstata do tamanho de uma batata». Do mesmo modo, Jeanne, o espírito livre e ágil, acaba por se contentar com um casamento de conveniência, trocando o amor e a paixão pela segurança inócua. Quando ela e o noivo visitam o apartamento, este renega e refuta a ideia de brincar às crianças, como Paul quisera. Morre assim o plano de Jeanne de poder casar paz e paixão.


Tanto Paul como Jeanne seguem o curso que a Natureza traçou irrevogavelmente para eles. Jeanne conhecerá um ocaso físico dentro de alguns anos. Paul encontra-se à beira de cruzar o crepúsculo em direcção à velhice. Idades diferentes, mas os mesmos receios inconscientes, os mesmos imperativos biológicos, as mesmas leis de ferro. Mas feitas as contas, é Paul quem se encontra em desvantagem: dentro do apartamento ele é um formidável tirano, cá fora é um zé-ninguém, um miserável, um falhado. Jeanne, bela e abastada, tem o mundo inteiro à sua disposição. Como Kael refere, «o Paul de Brando, o essencialmente ingénuo forasteiro, o romântico, não tem hipótese contra uma rapariga francesa da burguesia.» Jeanne poderá um dia transfigurar-se numa criatura amarga e desiludida: mas aqui o que importa é que Paul já perdeu essa corrida.


Mesmo assim, na cena do tango, ainda a vemos fraquejar ante as investidas e estratagemas de Paul; o que a acode não é a força da vontade, mas antes o retraimento desta. Quando Paul lhe fala da pensão que herdou da defunta esposa, nota-se na troça de Jeanne a semente do desdém. Ela vacila, mas acaba por salvá-la, subitamente, o poder da repulsa, da aversão, do tédio, do enjoo, forças infinitamente superiores às da paixão amorosa. Depois, na recta final, o contraste adensa-se: Paul persegue-a, com um sorriso efusivo nos lábios, louco, mas apaixonado, um homem desesperado que redescobre a vida; ela, por outro lado, transforma-se na vítima em fuga, a sua expressão habitualmente curiosa e certa de si é substituída por um esgar atemorizado.

Ironicamente, ambos buscam o mesmo: uma normalidade feliz. Jeanne recua para esta, enquanto Paul, por outro lado, investe contra ela. Avançam na mesma direcção, mas de modo incompatível. Também é então que devemos tomar noção de que a relação dos dois dentro do apartamento não era simples metáfora: acaba por se transmutar numa violência tangível e esclarecedora. Paul teve uma infância difícil; Paul nunca foi feliz; Paul é um homem inteligente, e imerso em dor. Mas por detrás disso tudo, esgotam-se enfim as desculpas: Paul é, apesar de tudo, um homem perigoso e intratável. Quando Jeanne o alveja, é o reflexo instintivo de uma mulher jovem. A esposa de Paul, mais velha e sofisticada, procurara primeiro recriar o marido no amante, e por fim desistira, preferindo um suicídio barato. Em Jeanne, o protesto da vida manifesta-se com maior vigor. O seu noivo é terreno pobre onde jogar semente; mas Paul era uma magnífica paisagem desolada, onde nada poderia crescer. A vida escolheu, o universo assentiu.


Se há coisa que este filme tenta fundamentar, é que nada nos é dado sem um preço, e assim sendo, não podemos tentar ter tudo sem pagar o preço absoluto. Lição batida, mas incontornável. Jeanne aparenta ser a que sofre menos mazelas no fim do ordálio (não obstante a última sequência do filme); contudo, a sua forma de amar parece-nos, ao fim e ao cabo, superficial e supérflua. Paul é capaz de amar profundamente, e o preço que paga por tal privilégio é o desespero e a desilusão, culminando no patético.

Marlon Brando oferta-nos o que foi, provavelmente, a melhor actuação da sua carreira; sim, é indulgente, mas sem ser pretensiosa, pois que cumpre o que promete. Brando era disléxico, e detestava decorar textos: na sua breve aparição em Superman, chegou a ler as falas dissimuladas nas fraldas do Super-Homem. Por isso mesmo, mais incríveis então se tornam certos momentos no filme de Bertolucci, que tão bem soube explorar o carácter de Brando. Este, aliás, diria depois que se sentiu usado pelo realizador. Talvez, mas os resultados estão à vista: o hipnotizante monólogo no apartamento, em que Brando reminisce sobre a sua própria infância, tornando-se indistinguível de Paul, e a declamação no quarto da esposa defunta, um dos maiores lamentos de amor alguma vez depostos no celulóide. E que dizer, também, do seu diálogo com a sogra no quarto, onde transparecem vestígios do Stanley Kowalski de A Streetcar Named Desire, dessa irascibilidade animal que outro actor "egomaníaco, indulgente, formidável" irá demonstrar nesse mesmo ano em Aguirre, der Zorn Gottes?


Este filme também denota o fim 'genuíno' da carreira de Brando. Depois do sucesso obtido no mesmo ano com O Padrinho, numa actuação que a nível de caracterização está nos antípodas desta, Brando expressa o desejo resoluto de se 'reformar'. Tal desejo não se veria concretizado em pleno: apesar de longos hiatos, ele retornaria aos ecrãs, principalmente por motivos financeiros (Superman, Apocalypse Now).

Mas 1972 marca, apesar disso, um ponto de viragem definitivo para ele. Cansado e desgastado pela dimensão grotesca da sua própria celebridade, critica o ofício de actor e a idolatria que lhe é votada, elogiando, ao invés, os homens de acção, como Gandhi e Martin Luther King. Nesta atitude, encontramos paralelos com Yukio Mishima, que também professou, a partir de determinado momento da sua vida, um certo desprezo pelo próprio instrumento da sua grandeza, dizendo que as palavras o haviam envenenado desde muito cedo, e que só mais tarde havia descoberto a "via da acção". Como Wagner havia especulado, ambos pareciam ter discernido que a arte não é senão uma declaração de impotência perante a vida. Deste ponto comum, contudo, os dois seguiram caminhos marcadamente diferentes: Mishima treinou o seu corpo arduamente, preparando-o para uma morte pública gloriosa, antes que a decadência física o tolhesse. Brando preferiu o isolamento, aniquilando o seu corpo aos poucos, da maneira menos digna possível. Mishima almejava singrar-se um ídolo; Brando detestava sê-lo.


Maria Schneider também merece menção. Resplandecente, mas sempre terrena, o seu à-vontade, especialmente nas cenas na casa de banho, providencia o devido contraponto ao taciturno Brando; e os improvisos deste alimentam-se da espontaneidade dela (veja-se a cena ao espelho, enquanto ele se barbeia e ela se maquilha). Muito se tem dito sobre o papel preponderante que o Último Tango... teve na sua vida desordenada e destrutiva. Maria sempre culpou Bertolucci; este sempre se isentou de culpas, até muito recentemente, ao saber da sua morte: então, algo como remorso franco (sem a admissão implícita de culpa) veio a lume da sua parte. De qualquer modo, a auto-destruição de Maria só toma forma sistemática durante e após a sua participação em The Passenger. Bertolucci foi um grão de areia na ignomínia do mundo. É também interessante notar que tanto Maria como Marlon partilharam de similaridades: ambos tiveram uma infância ausente de figuras paternas estáveis, e ambos atingiram a fama demasiado cedo. Isso explica mais sobre a sua dor e infelicidade do que quaisquer análises às manipulações directoriais de Bertolucci ou de outros realizadores.


Último Tango em Paris é o produto de uma indústria cinematográfica italiana na recta final da sua melhor fase, e de um realizador jovem, mas já com pleno domínio das suas capacidades. Contudo, por mais meritório que fosse o vaticínio de Kael, este filme não parture uma nova era; como bem ajuíza Ebert, «não se tratou do início de algo novo, mas o triunfo de algo antigo -- o "filme d'arte", cedo a ser substituído pelo completo triunfo dos "filmes-evento" publicitados em massa». Em 1975, sai Jaws; em 1977, é a vez de Star Wars.


Traçando a árvore genealógica deste filme, não podemos deixar de lhe dar razão. Último Tango... inaugura a era da abertura do cinema à nudez e ao sexo explícito, mas não instaura uma dinastia, perpetuando-se em influências esparsas (vamos encontrá-las em sítios como Monster's Ball, ou Naked, ou ainda Irréversible), sendo descendentes directos, como Antichrist ou 9 Songs, cousa rara. Deixou escola, enfim, mas não deixou marca. A um nível ainda mais subterrâneo, junta-se pela anca a uma luminária do porno chic, precursora igualmente do neo e pós-sexploitation, do softcore: falo de Deep Throat, saído também em 1972. Aliás, o conhecido Emmanuelle deve em grande parte a sua partogénese ao filme de Bertolucci.

No fim de tudo, e generalizando, o filão sexual do Último Tango... acaba por desembocar no erotismo lúdico (numa inversão inócua e inocente como vemos em Bolero), agora extinto, no erotismo-chamariz do dito cinema independente, ou no porno actual, mecanizado, categorizado, funcional. Estas obras, movimentos e tendências não descendem dele, como referido, antes, aproveitaram-se dele. O artista rompe os portões, fura as muralhas; mas quem segue na sua esteira são sempre as massas interesseiras, que saqueiam e usurpam.

Resta apontar o seguinte. O projecto original deveria figurar uma relação do foro homossexual. O actor francês que era para ter encarnado o papel (ou equivalente) de Paul recuou no último instante. Quanto a Brando, dadas as suas afirmações públicas (que poderão ou não ser forjadas) sobre a homossexualidade, e tendo em conta a cena no filme em que é vítima de sodomia soft, não seria à partida uma impossibilidade o desempenho de uma personagem homossexual. Como Ingmar Bergman apontou, aliás, o filme parece fazer muito mais sentido se enquadrado assim: a cena da manteiga, o diálogo da matança do porco, o secretismo do apartamento, a mistificante relação de Paul com o amante da sua esposa.


Talvez o próprio Bertolucci não estivesse, desde o início, muito enamorado dessa ideia, de qualquer modo; quando chegou a altura de adaptar The Holy Innocents de Gilbert Adair, o irmão incestuoso perdeu a sua 'faceta' bissexual, reduzindo assim a complexidade dinâmica do triângulo amoroso. Será o próprio conceito que não agrada a Bertolucci, ou falta-lhe o arrojo para se debater com tais temas? Poderá parecer absurdo afirmar tais coisas do realizador de um dos filmes mais polémicos de sempre. Mas como tudo na vida, trata-se aqui de uma questão de perspectiva.

Bertolucci começou a sua carreira sob a alçada de Pasolini; este, alguns anos mais tarde, oferece ao mundo Salò. E se Bertolucci quase enfrentou a prisão pelo seu filme, Pasolini pagou o óbulo da sua arte com a própria vida. Bertolucci ficou uma escala aquém de Pasolini, tal como Pasolini ficou uma escala aquém de Sade. (Não falo de uma escala qualitativa, obviamente.) Há algo, inclusive, da metodologia sadiana no comportamento de Paul dentro do apartamento. Mas em Sade os factores externos do filme de Bertolucci invertem-se: os seus protagonistas usufruem da condição social de Jeanne, e são ao mesmo tempo a força dominante, activa. Dominância total de classe e também de género: as suas vítimas são maioritariamente mulheres, e o seu destino está selado. Os heróis de Os 120 Dias de Sodoma dispõem de todas as cartas na mão, trata-se de uma situação estática e intransponível. Sucedem assim onde Paul falha, criando uma prisão determinística quase perfeita: o seu castelo inexpugnável empalidece o diminuto e arrombável apartamento de Bertolucci, por onde a vida interior se escoa, e a vida exterior se infiltra. A sua crueldade é uma panaceia lúdica, ao invés de uma terapia de choque para o desespero existencial. O fatalismo abona a seu favor, vai pender apenas sobre as cabeças das suas vítimas.

Devo, portanto - acrescentando ao que no início postulei -, dizer que um homem não pode escolher nem construir a sua prisão: mas que pode construir prisões para os outros. É isso que os castelos de Sade e de Pasolini, e o apartamento de Bertolucci, são: o retiro daqueles para quem o mundo é uma prisão, onde possam aprisionar aqueles para quem o mundo é um retiro.

Se o arrojo do Último Tango em Paris parece ter perdido o seu gume no decorrer dos anos, o seu mérito artístico continua afiado. Em verdade, através das várias iterações subterrâneas que procederam deste filme, e de outras "obras de fundação", como Texas Chainsaw Massacre, perdemos a capacidade de nos chocarmos com o "artigo original": como não, após uma geração inteira de produtos como Saw, Hostel, Guinea Pig, e de um porno versátil e acessível, que atende aos fetiches mais extremos? E contudo, o filme de Bertolucci permanece e permanecerá relevante, não como produto de choque, mas como obra de arte. E é esclarecedor que na nossa era, filmes deste género sejam como flores no deserto. A nível de arrojo, presentemente, apenas A Serbian Film tem o poder de nos arrancar do torpor pírrico em que mergulhámos, e de acicatar resquícios de pânico moral.


Ficha Técnica: Último Tango em Paris / Ultimo Tango a Parigi na IMDB.