«A arte parasita a vida, tal como a crítica parasita a arte.»
Harry S. Truman

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Zardoz (1974)


Uma enorme cabeça de pedra voga no ar, morosamente, em direcção à terra. Aí, acerca-se dela uma troupe de cavaleiros, envergando máscaras que nos fazem imediatamente pensar no deus bifauce dos romanos: Jano. Jano, aquele que contempla passado e futuro simultaneamente, e que dá também o mote da guerra.

Enquanto os bárbaros entoam Zardoz! Zardoz!, começamos a tomar noção de que algo não bate certo nesta paisagem solene e sinistra. O trajo dos ditos bárbaros é algo ridículo, no mínimo. Os mais atentos, repararão que um deles, inclusive, enquanto o grupo se mostra pródigo em vénias e cânticos, tropeça desajeitadamente num calhau, uma atitude não muito condigna para um membro duma hoste guerreira. Depois, a grande cabeça faz ressoar a sua voz pelo vale; voz essa que é à guisa de um James Earl Jones, ainda mais cavernosa que a dos seus fiéis. As inesquecíveis palavras que profere tanto poderiam figurar num tomo de filosofia como num sketch dos Monty Python (e não pareceriam de todo fora de sítio num texto religioso; essa é, aliás, a verdadeira questão).



Após o breve discurso, da sua boca cavernosa é cuspida uma multitude de armas e respectivas munições. As armas têm um aspecto estranhamente antiquado, tendo em conta que a história decorre no século XXIII. Um espectador inteligente (talvez demasiado inteligente) tentará conjurar uma explicação racional para tudo isto. Mas desde o preâmbulo do filme, ainda antes da cabeçorra surgir, quando um homem ostentando uma touca e penugem facial desenhada a marcador nos diz que tudo isto é uma farsa, de maneira assaz eloquente – desde então, digo, que o nosso espectador estará preso de um sentimento ambíguo: será este filme, para ele, puro génio, ou puro lixo? Uma obra séria, ou uma comédia? Raios o partam se ele sabe para qual dos dois se há de virar. O segredo, contudo, é trilhar o fio da navalha, entre ambos os mundos.


Não devemos perder demasiado tempo pintando o enredo: umas pinceladas largas bastam. Isto porque Zardoz, à laia de tantos filmes de David Lynch e afins, é como uma mulher: quanto mais misteriosa e distante da nossa compreensão melhor. Uma vez descoberto o mistério e instaurada a familiaridade excessiva, perde-se o encanto.

No futuro, após o colapso social da humanidade, um apanhado da 'elite' refugia-se em pequenos enclaves paradisíacos, enquanto a corja definha no exterior. Aos indivíduos dessa elite, é dado o epíteto de Eternos, enquanto os membros da populaça são simplesmente referidos como Brutos. Existe ainda uma terceira classe: os Exterminadores. Esses são encarregues inicialmente por Zardoz de eliminar os Brutos da face da terra, e, posteriormente, de os escravizar, para plantar colheitas. E quem diabos é Zardoz? Simplesmente, um dos Eternos, que usa a cabeçorra volante para se fazer passar por um deus, e assim controlar tanto Brutos comos Exterminadores.

Contudo, um dos Exterminadores, de seu nome Zed (Zed, o último dos homens?), infiltra-se na 'nave' de Zardoz, e, sem grandes delongas, enfia-lhe uma bala no coiro. A nave acaba por aterrar sozinha no Vórtex, um dos referidos enclaves. Aí descobre a sociedade dos Eternos, criaturas imortais, detentoras de poderes telepáticos; convém também referir que parece ser essencialmente uma sociedade matriarcal, porventura porque os homens não são capazes sequer de manter uma “erecção espontânea”, quanto mais governar o que quer que seja. Zed é tratado como uma aberração, e apenas lhe é permitido viver de modo a ser sujeito a estudos científicos. Apesar disto, o nosso protagonista não é o que aparenta ser (para além de um homem de meia-idade envergando fraldas vermelhas, isto é), e cedo os Eternos vêem a sua pacífica comunidade virada do avesso.


Duas questões fundamentais se colocam sobre este filme. Primeiramente: o que é? Em segundo lugar: como é possível a sua existência? A resposta para a primeira será por certo vaga, inteiramente pessoal, e só satisfará as mentes mais pedantes. Quando nos deparamos com um filme assim, é suficiente que ele seja. Quanto à segunda questão, esta sim é pertinente. Vejamos.

John Boorman, na sequência do sucesso de Point Blank (com Lee Marvin) e Deliverance (com Burt Reynolds, entre outras luminárias), pôde dispôr do tempo e dinheiro dos estúdios para realizar o que bem lhe apetecesse. Este género de atitude não era rara nos anos 70; poderá parecer-nos estranha agora, numa era em que até autores aclamados como Darren Aronofsky têm dificuldade em arranjar financiamento. De qualquer modo, os estúdios não eram assim tão crédulos: o orçamento redundou num milhão de dólares, o que, mesmo para a altura não era muito. A presença de Sean Connery no filme também é facilmente explicável: na ressaca dos seu papel como Bond, o sempiterno escocês estava com dificuldades em arranjar trabalho.


Tematicamente, o filme é a obra de uma mente fértil e instruída. Debruça-se sobre uma míriade de tópicos que ainda hoje são de relevo: a imortalidade do ser humano, manipulação genética, augmentação das nossas capacidades mentais, sistemas informáticos altamente avançados; tudo isto bem antes do advento dos movimentos trans ou pós-humanistas, e da era da informação computadorizada. Quando Connery entra no quarto de Zardoz, na quinta dos Eternos, e acede ao Tabernáculo pela primeira vez, deparamos com uma antevisão perspicaz da alteração actual da linguagem escrita com base na fonética (apples = applz, salt = solt, leather = lethur, tudo isto antes da leet speak dos hackers ou do flagelo da SMS e das redes sociais).


A nível de influências, não podemos deixar de pensar em A Máquina do Tempo de H.G. Wells, e nos seus Eloi e Morlocks; mas, mais ainda, em Aldous Huxley, no seu Admirável Mundo Novo, e também no Também o Cisne Morre, este último admitido pelo próprio Boorman. A um nível mais superficial, mas omnipresente na obra, temos O Feiticeiro de Oz, objecto de uma revelação infantil, mas interessante.

Esta mescla de conceitos científicos e filosóficos não torna o filme confuso ou demasiado longo, como alguns apontam. Na verdade, ele raramente esmorece ou nos oferece espaços mortos (o clímax no interior do Tabernáculo comete esse pecado, mas o próprio Boorman admite que o deveria ter cortado mais). A cada momento há um conceito novo, ou uma actualização deste curioso mundo, atirados na nossa direcção. O ritmo é gerido de maneira eficiente. Tenhamos em conta que Inception leva duas horas para nos enfiar uma única ideia pela goela abaixo, da maneira mais simplista possível, e isto na primeira década do século XXI.

Zardoz é um filme mais enriquecedor e gratificante que qualquer produto da science fiction obrado nos nossos dias: infelizmente, também é mais ridículo. É mais profundo, mas menos cool. Recentemente tem sido apropriado pela moda do revivalismo, tendo-se tornado um objecto de culto kitsch; mas o problema do kitsch é ser superficial. As análises sérias de Zardoz são raras, em parte porque o filme tem a admirável qualidade de produzir dissonância cognitiva: não conseguindo ater a sua natureza ambígua e complicada, a maior parte das pessoas prefere assimilá-lo como um objecto de entretenimento folgazão, nunca a ser compreendido ou encarado seriamente. Este filme causa a mesma reacção que John Merrick debitando Shakespeare da sua jaula circense: Zardoz é o Homem-Elefante do mundo do cinema.


Ao longo do comentário áudio da edição para DVD, Boorman tenta dolorosamente esclarecer os pontos principais do enredo. Pelos vistos o acrescento dum preâmbulo quando o filme saiu, de modo a tentar iluminar o público embasbacado, não funcionou. Contudo, esta nova tentativa de tornar o filme mais acessível, ou de o desmistificar, redunda num exercício patético e desanimador. O que ele acaba por fazer, quando não se reduz a um silêncio revelador, é somente apontar à letra o que está nesse momento a decorrer na tela. Isto diz muito sobre o público que temos agora: subtil, irónico, mordaz, mas burro como uma porta.

Noutras alturas, ele parece admitir que o seu projecto foi demasiado ambicioso, demasiado abrangente, uma manta de retalhos ineficiente de vários temas. Mas tais desabafos não nos soam honestos: no tom, parecem-se mais com a confissão de Galileu, uma concessão forçada ao espírito do presente, ao torcer de braço da opinião geral. Acima de tudo, Boorman parece-nos embaraçado, mas perto do final, na cena em que Zed destrói o Tabernáculo, vem ao de cima o seu brio de artista. Aí tomamos noção, durante a sua diatribe contra o uso de CGI no cinema actual, de que afinal este homem ostenta um orgulho secreto na sua obra. É como deve ser; pois, como disse Camus, a última coisa que um artista deve apresentar face à sua obra é arrependimento.


A nível de categorização, podemos enquadrar Zardoz dentro do sub-género “terra moribunda” (vide Dying Earth), comum nas andanças da ficção-científica e fantasia, irmão praticamente gémeo da ficção pós-apocalíptica. Contudo, Zardoz é mais optimista que outros filmes da década que o viu nascer (os 70 foram por excelência a década do downbeat), como Planet of the Apes, THX 1138, Soylent Green. O final, ao som do magistral segundo movimento da 7ª sinfonia de Beethoven, é, como o final de 2001: A Space Odissey, uma prova de optimismo: não é apenas fuga, antes, aponta uma nova direcção para o ser humano. Desde então, o final optimista tornou-se um simples mecanismo hollywoodesco de escape, uma cartada psicológica, tendo tingido filmes como Blade Runner (a versão original) e The Road.


Mas é altura de refrear os elogios e cair na realidade. O cinema é um médium que não perdoa deslizes de estilo: mais do qualquer outra arte (aparte os emergentes jogos de vídeo), ela é regida pela estética da moda. Excepto quando se torna objecto de culto retro precisamente por ser datado, é difícil a um filme ascender ao estatuto de 'intemporal'.

Transposto para uma banda desenhada ou um romance (que, de facto, foi escrito e publicado), este projecto não teria atraído tantas críticas. Na verdade, muitos clássicos da ficção-científica, se adaptados ao cinema, ficariam ainda piores que Zardoz. Mais do qualquer outra forma de arte, o cinema assenta no efeito do credível. Esse efeito não se equaciona com o verosímil per se: um Transformers ou um Harry Potter não são verosímeis. Mas são credíveis, isto é, são realistas sem serem naturalistas, e como tal, as audiências estão dispostas a ser complícitas e crédulas com o logro.

A verdade é que a direcção de arte neste filme é uma abominação. Desde o guarda-fato, à cenografia, até à inépcia dos extras, tudo tresanda a mau gosto. A ideia de que partem alguns dos pormenores mais hilariantes e trágicos de Zardoz nem sempre é descabida: por exemplo, compreende-se que o cabelo comprido, em trança, dos Exterminadores, e os seus trajes, remetam para as hostes bárbaras dos mongóis, dos hunos, ou para os índios norte-americanos; e que as vestes dos Eternos referenciem, porventura, a sociedade egípcia (um comentário perspicaz).

Mas algo se perdeu pelo meio. Atribuo isto a duas causas principais: o factor British, e o factor Baixo Orçamento. O primeiro é difícil de explicar, mas será conhecido dos mais batidos na cinefilia britânica: embora do Reino Unido tenham saído as grandes luminárias da ciência especulativa: um Admirável Mundo Novo, 1984, ou até Frankenstein, existe algo de inocentemente desajeitado numa série como The Prisoner (para não me perder em exemplos), que é uma mistura inefável de génio genuíno e de saudável ridículo. Embora as produções britânicas sejam geralmente exemplares a nível de argumento, a sua direcção de arte é infame.

(Não que eles não tenham consciência disso: o brilhante Garth Merenghi's Darkplace ilustra bem a sua capacidade de explorar, aliás, esse handicap.)


Em relação ao factor do baixo orçamento, quem está habituado ao reino da série B compreenderá imediatamente as dificuldades e desafios que a falta de recursos impõe a uma mente creativa (vide supra). Alguns dos 'desenrascanços' obrados por Boorman resultam, outros não. Que dizer das baguetes de pão esverdeado? E das cenas de comunhão telepática (que fazem o Scanners parecer um documentário sobre telepatia)? Ou ainda das roupas dos Brutos (de novo, tendo em conta que estamos no século XXIII)? E dos trajes masculinos dos Eternos, inesquecíveis e traumatizantes? Sempre que alguém morria, era inevitável um plano aproximado do seu rosto, acompanhado do torcer de uma narina, um piscar de olho, ou o soluço de uma garganta. E a inigualável sequência em que Sean Connery rompe a coberta de plástico de uma estufa, enquanto alguém geme: «Não pode ser feito!»


A riqueza de conceitos em Zardoz só é rivalizada pela consistência do seu ridículo. De modo que, quando uma cena realmente boa emerge, é como uma ave rara, da qual desconfiamos. Um excelente exemplo disto é a “sequência da osmose”, de uma grande beleza, que a um tempo me fez pensar, paradoxalmente, na metamorfose final em 2001 e no desvairo cego de Tuco enquanto corre o cemitério no clímax de O Bom, o Mau e o Vilão. Boorman é um excelente realizador, e não pretendo comparar estilos; mas a nível de rigor, Kubrik teria sido bem mais meticuloso com este material, por exemplo (apesar de A Laranja Mecânica também já apresentar sinais de 'velhice'), ou mesmo Ridley Scott (britânico, mas uma excepção à regra!). E mesmo no lado oposto do espectro estilístico, no reino da hipérbole e da alegoria sem freio, um Jodorowsky teria levado as ideias ainda mais longe, e dispondo dos mesmos recursos (The Holy Mountain teve aproximadamente o mesmo orçamento que Zardoz).


Horrorizado, constato que Zardoz se acaba por tornar, então, naquilo que eu há muito ansiava por ver, na minha infinita ingenuidade: um filme de série-B profundo. Devemos então clamar por um remake desta obra, para que justiça lhe seja por fim feita? Por certo que um tratamento mais 'actualizado' das suas temáticas lhe granjearia um lugar entre as grandes obras cinematográficas do nosso tempo. Contudo, também isto é um logro. Soa bem no papel: mas empiricamente, quantos remakes na história do cinema cumpriram tão nobre função? Também esse sonho se esbateu em mim: o remake na prática traduz-se apenas num mecanismo de sacar dinheiro ao público incauto, eternamente reciclando mas nunca melhorando.

Não: Zardoz é um artefacto. Mais do que isso, aliás: é uma relíquia, pois é irrepetível. E contém, já em si, o conhecimento e a paródia de si mesmo.

Nesse aspecto, partilha dos mesmos genes do cinema corrente actual, albergando em si já todas as críticas e elogios possíveis, todos os referenciais e significantes. Podemos troçar de Zardoz e de The Fast and The Furious, mas não podemos fazer deles uma paródia: a paródia e a sátira tornaram-se comentários redundantes. É por isso que, presentemente, os comediantes morrem de sede no deserto: o sketch já não pode suplantar o grotesco do produto original que referencia, e os números de stand-up apresentam somente caricaturas pálidas. Tanto Zardoz como The Fast and The Furious são sintomáticos, e elucidam-nos sobre a era em que vivemos. O primeiro é o retrato do artista moderno, o segundo, do público moderno: retrato sério e simultaneamente caricatura.


Mas a verdadeira questão é esta: será que Zardoz, apartando os seus aspectos lúdicos, tem algo para nos oferecer? Ao contrário de grande parte da ficção-científica actual, e até do cinema de autor, afirmo que sim. Zardoz não é original, é referencial, sintético; mas é mais fértil que o panorama maninho e monocromático que agora nos acomete.

Foi curiosa esta falsa alvorada dos nossos tempos: pródigos nos meios, falta-nos conteúdo. Consumimos frutos sem semente, e nós próprios somos flores estéreis. Um espírito curioso, uma mente ávida, não poderão beber de um poço seco: Zardoz é uma nascente pitoresca, mas que abandonamos saciados.


Ficha técnica: vide Zardoz na IMDB.

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