«A arte parasita a vida, tal como a crítica parasita a arte.»
Harry S. Truman

sábado, 5 de novembro de 2011

Woyzeck


A sequência que abre a adaptação de Werner Herzog da famosa peça de Georg Büchner define e condensa todo o filme. O visceral sempre foi o modo de comunicação artístico mais directo, e talvez mesmo o mais eficiente. Mesmo que se trate, para nós, do primeiro contacto com Woyzeck, ao primeiro vislumbre de Klaus Kinski, espojado e espancado como um cão, atarefando-se numa sucessão de movimentos mecânicos como queijo atravessando o ralador, nós sabemo-lo então, sem sombra de dúvida, como se sempre o conhecêramos — aquele ou aquilo é Woyzeck. E em verdade, ele não pode deixar de nos ser familiar: Woyzeck é o homem antigo, e simultaneamente, a promessa do homem moderno, e o seu estrondoso fracasso.

O Woyzeck de Herzog

O enredo é rasteiro; caberia num recorte de jornal, e eu irei simplificá-lo grosseiramente. Woyzeck, soldado, engole  uma vida miserável. O seu capitão prega-lhe sermões de moral, enquanto o cientista local o usa em experiências descabidas a troco de uns míseros cobres. Em casa, a piedosa mulher prega-lhe um par de retorcidas pontas na testa, com o auxílio do tamboreiro-mor. Criatura dotada de uma sensibilidade particular e de grande inquietude nervosa, Woyzeck, debilitado pelo regime alimentar que lhe é imposto pelo doutor, começa aos poucos a enlouquecer. Quando lhe insinuam o matrimónio traído, é a proverbial gota de água. Depois de ser surrado pelo tamboreiro, leva a mulher para a beira de um lago e mata-a à facada. A história real na qual Büchner se baseou é ainda mais sórdida. Mas o seu génio reside, precisamente, em ter conseguido revelar por via do grotesco, cujo interesse é passageiro, o verdadeiro horror, que é imperecível.


Kinski poderia parecer, a quem conheça a peça, uma má escolha para desempenhar tal personagem. Como é que um homem maior que a vida poderia envergar a máscara de quem nunca viveu? Como é que o leão poderia emular a mosca, a barata? Mas tais receios são infundados. (E depois, de qualquer modo, acode-nos a memória: o seu papel como corcunda em For a Few Dollars More, por exemplo.) Apesar de passivo, Woyzeck não é neurasténico: ele exsuda energia nervosa e cinética, existem nele vulcões à espera de eclodir, bombas aguardando estoirar. Assemelha-se a um homem que ateou fogo a si mesmo e a quem regam cruelmente com gasolina; há nisso, de resto, parecença suficiente com a relação conturbada entre o próprio Kinski e Herzog.

O que é incrível é que o corpo de Kinski nunca chega a trair a dimensão patética de Woyzeck: pelo contrário, ainda a acentua mais. Eis uma estrutura óssea imponente, coberta de carne atormentada, doentia. As suas olheiras são tanto mais impressionantes porque escavadas em órbitas rochosas: a sua pele chupada e amarelenta revela por baixo cavernas, escarpas, abismos. Se este homem se fizesse cadáver, restaria ainda o edifício solene das suas ossadas para nos impôr respeito, como o esqueleto de um velho elefante.

(Este corpo difere em tudo do de Christian Bale em The Machinistcom o seu esqueleto de pardal. Mas em ambos a Carne é consumida pela Ideia. Richard Dawkins diria que é a meme que subjuga o gene; Max Stirner diria que são os espectros que assombram a catedral do Ser, ou melhor, do Único. Esta auto-flagelação encontra a sua conclusão lógica, e torna-se por fim fetiche sexual, no Crash de Cronenberg e no Antichrist de Trier.)


Mas como lhe falta estatura heróica, este corpo atormentado torna-se meramente grotesco. Não duvidamos que este homem, enquanto barbeia o seu plácido capitão, facilmente lhe quebraria o pescoço com as mãos nuas, se o quisesse. E contudo, ele provoca-nos asco, desprezo. O corpo do tamboreiro-mor é heróico; o de Woyzeck é bestial. É aí que reside a repugna da sua esposa por ele, é isso que explica o sucesso do tamboreiro. Este último é magnificente, como um deus olímpico, enquanto Woyzeck é monstruoso, como as velhas divindades ctónicas. O Woyzeck de Kinski é a criatura de Frankenstein. Woyzeck é o Golem. Woyzeck é Grendel, descendente de Caim, e como ele, fadado a derramar sangue. Tudo isto está contido e é expresso através do corpo de Kinski, que ele manuseia como um tição em brasa.

A ajudar, temos ainda o facto das filmagens terem começado meros dias após o término da produção de outro filme de Herzog, Nosferatu: Phantom der Nacht. figurando igualmente Kinski. Kinski, naturalmente, encontrava-se extenuado, e portanto, em perfeitas condições para desempenhar o papel de Woyzeck. Herzog sabia-o. Herzog sempre foi sagaz, mesmo quando não foi correcto. É curioso notar esta continuidade física entre Nosferatu e Woyzeck; ambos apresentam um corpo dotado de uma força sabotada pela deformidade do seu dono. Um poder imenso, que se deve contudo esconder, votado ao asco.


Herzog faz o melhor que pode com os parcos recursos de que dispõe. No que dele depende, a sua mão é firme, quase tirânica, sem que o resultado seja estéril ou artificial. O cinema é a arte mais dispendiosa, e ele sempre soube obrar no meio da maior penúria. Não se poderia esperar menos de um homem disposto a roubar uma câmara de filmar para se ir perder no meio da selva. A disposição dos actores no ecrã é sempre bem conseguida, embora sem grandes lustres, como é habitual com Herzog. Mas certas cenas chegam a ser belas ou singulares: Woyzeck no início, Woyzeck matando a mulher, Woyzeck correndo por um campo verdejante. Herzog é um artista imaginativo, mas também pragmático e mercenário: como tal, o Woyzeck que nos apresenta não toma grandes riscos estruturais, as cenas são encadeadas de maneira lógica, sanitizada. Talvez tenha chegado enfim a altura de uma nova adaptação, mais orgânica, com mais entropia narrativa.

19th Century Schizoid Man

Apesar de tudo, o filme de Herzog é a adaptação cinematográfica mais representativa que possuímos da peça de Büchner. E ele interessa-me também na medida em que há uma correlação de temperamento entre as épocas que viram nascer ambas as obras. Herzog apanha o final da década de 70 do século XX, década desiludida por excelência, como contraponto aos anos 50 e 60; em breve viriam décadas de complacência e conformismo coloridos, que sufocariam esse espírito com um manto açucarado. A Alemanha de Büchner (ou antes, a então frágil congregação de estados germânicos) possui as suas parecenças com este período depressivo: vivia-se a ressaca das revoluções liberais, a Europa pós-napoleónica e pós-Iluminista era agitada pelo espírito de revolta, e ao mesmo tempo, por um profundo cepticismo e desconfiança. Büchner descreve nas suas cartas, com uma lucidez curiosa para alguém da sua idade, a rápida evolução que nele se operou, de idealista empenhado na causa revolucionária para caricaturista desiludido da condição humana.


Woyzeck torna-se o primeiro herói (ou anti-herói) plebeu da literatura alemã: ele representa a opressão das massas, o jugo da classe. Mas há outro aspecto nele, de seminal importância: ele apresenta-nos, simultaneamente, a natureza única do indivíduo. Contudo, Woyzeck em nada se assemelha aos heróis do Romantismo, ao Lucífer ou o Prometeu dos poetas. A sua estatura não é heróica e trágica, como já se apontou, mas monstruosa e patética. Os seus pares literários são a criatura de Mary Shelley, porventura um Hamlet, ainda mais os tristes imbecis de Dostoievsky. E de facto, não é rara a vez que ele nos lembra uma incrível mistura entre Mishkin e Rogojin de O Idiota. E por essa via, ele conduz-nos a um binómio ainda mais famoso: Dom Quixote e Sancho Pança. Woyzeck é ambos; revela a acuidade e impertinência terrena do herói picaresco, e ao mesmo tempo, a impotência e delírio do sonhador.

Como se pode constatar, há muitas carapuças que servem a Woyzeck. A peça original permaneceu inacabada, mercê da morte prematura de Büchner aos 23 anos, e ademais, num estado fragmentário. Adquiriu assim, uma natureza do tipo episódico móvel, para sempre um puzzle de livre associação, tarefa sem término, porque lhe faltam peças, e as que existem não estão na sua forma final. Eternamente reciclável, não surpreende que Woyzeck seja o objecto por excelência do chamado processo de recuperação. Os modernos pegaram nele e logo o amaram: viram nele a marca do génio, sem a intocabilidade estanque da obra acabada. E descobriram também, naquele produto infeliz do acaso, a mesma libertação da forma, a mesma desconstrução dos cânones, o mesmo experimentalismo que eles logravam ater por via dos seus manifestos e polémicas infindáveis. Assim sendo, cada um o interpretou como lhe aprouve, envergando o talento de Büchner como uma máscara. A peça  permite promiscuidade interpretativa; é supremamente democrática e actual, porque inacabada, e como tal, eternamente susceptível de emendas, adendas, versões; disponível para todos, casa aberta, musa de pernas escancaradas — falta-lhe o distanciamento olímpico e aristocrático da obra completa.


Embora se trate talvez de um sentimento herético, gostaria que Büchner tivesse dado os acertos finais na sua obra. Quando um artista morre prematuramente, ou renega, em fim de vida, a sua criação, estamos sem dúvida perante uma tragédia, ou, se o preferirmos, uma farsa do destino: basta pensarmos em Gogol ou Kafka. E que dizer daqueles que a história tratou de apagar, como foi o caso com tantos tesouros helénicos? Woyzeck não é, pois, a única obra a fazer-me sentir assim: lamento-me sempre que ponho a vista noutras luminárias inacabadas, como o Vom Kriege de Clausewitz, O Castelo de Kafka, o Bouvard et Pécuchet de Flaubert, o 120 Dias de Sodoma de Sade.

Voltando uma última vez a Woyzeck, o homem, agora por via de Stirner, uma figura que eu associo a Büchner por certas razões óbvias, e outras mais obscuras. Woyzeck encontra-se verdadeiramente só neste mundo. Símbolo, metáfora da massa, e contudo separado dela, ele é portanto tanto mais indivíduo. A sua maleita não é a solidão, mas antes, não possuir o poder necessário para usufruir dela. A chatice é que ele está só, mas não sozinho. Separado da massa, mas não fora dela: escorraçado não para a orla das gentes, como um Bernardo Soares, mas para o seu seio, como o Selvagem de Aldous Huxley.


Em Woyzeck temos o retrato vivo do rescaldo das grandes revoluções, quer sejam culturais, económicas, ou políticas: a criatura humana comum, o homem que fica para trás. Ele é o resto das somas e subtracções do processo revolucionário, a escória das grandes mudanças, e contudo ele é imutável, imortal: fonte inexaurível de exploração, de energia, de sacrifício. Ele é aquele que para tudo contribui, e que de nada beneficia. As louváveis ideias e sistemas filosóficos da sua era subjugam-no, em vez de o emanciparem. O Iluminismo deu à Humanidade, mas não lhe deu a ele. O positivismo científico que inundará o restante do século XIX e século XX, apenas se aproveita de si para a sua causa. Woyzeck sabe isto: retorque com secura ao capitão que os pobres terão de trabalhar nesta vida e na próxima. Ele conhece nos seus ossos a verdade eterna que preside à exploração humana.


O capitão e o doutor julgam-se acima de Woyzeck, acicatando a sua loucura à guisa de entretenimento (visão profética da sociedade lúdica moderna, antecipando-se mesmo a Huxley), mas são eles próprios autómatos egoístas, habitáculos da Ideia. São tão loucos como Woyzeck: apenas não tão desequilibrados. Os seus gestos e palavras (exagerados na sua clareza de intenção por Büchner, que os torna assim quase em arquétipos) traem a verdade: por detrás da moral do capitão esconde-se a sua melancolia e a sua falência de valores; por detrás da honestidade científica do doutor oculta-se a preversidade e a ambição. Vemos aqui a guilhotina de Hume em acção: as coisas são-nos apresentadas como deveriam ser, e ao mesmo tempo, são-nos reveladas como são.

Apenas Woyzeck adivinha o enorme vazio que se esconde por detrás da Ideia, e dos corpos que ela habita. Ele adivinha a tempestade que há de vir. Deus ainda não morreu, mas encontra-se moribundo; outras coisas sagradas ainda irão fenecer. Woyzeck pressente a falta de alicerces por detrás, não apenas da sua vida, mas das vidas de todos. Tudo é falso, assente sobre areia movediça. Em breve, as grandes mentes também terão acesso a essa verdade, e assustar-se-ão. Schopenhauer falará disso, referindo-se ao véu de Maya; Dostoievsky enlouquece os seus protagonistas com o terror niilista do vazio, e faz Raskolnikov assistir a visões apocalípticas no final de Crime e Castigo; Nietzsche apanhará o comboio há muito em curso e tratará de demolir o edifício da milenar da moral, procurando substituí-lo por outro sistema positivo. Os existencialistas retomarão essa demanda, e entre eles, Albert Camus irá debater-se já não sobre o horror do vazio, mas sobre o absurdo.


O Mersault de Camus reage com a indiferença de um traumatizado ao absurdo da existência humana, e não consegue entrever a verdade senão já perto da hora final. O Josef K. de Kafka age de maneira presunçosa e polida até ao seu patético desenlace. Quanto a Woyzeck tem que ser empurrado na direcção da loucura. (É curioso que as obras de Camus e Kafka situem a perdição dos seus heróis no banco dos réus: aparentemente a peça de Büchner também deveria conter um último acto decorrido num tribunal.) De qualquer modo, a humilhação e a fome abrem-lhe as portas da percepção. Nisto, ele assemelha-se aos mártires da religião, e às suas visões induzidas pelo delírio. Woyzeck é um mártir sem religião: as verdades a que ele acede não são portanto verdades divinas, mas as verdades humanas. O Apocalipse que ele divisa não é já o da cristandade, mas o da sociedade.

A infidelidade conjugal enquanto catarse, repercutindo-se ora narrativamente por via da tragédia, ora psicologicamente por via da loucura, é ainda um mecanismo herdado dos românticos: Büchner não o consegue evitar, do mesmo modo que Stirner, ao mesmo tempo que deita fogo à filosofia ocidental, se vê obrigado a usar a dialéctica hegeliana. Mas mesmo assim, o efeito que a traição de Marie obra na psique de Woyzeck é duplamente consistente: ela é literalmente a única coisa que lhe importa neste mundo, que possui tangibilidade, que é genuína. O amor é a única coisa real para Woyzeck.

A traição irá demolir essa trave-mestra, e todo o edifício irá desabar. O seu deus era o amor por Marie, e como tal, era também a sua realidade. Mas, repristinando as preocupações de Dostoievski, se Deus não existe, então tudo é possível. No século XIX esta questão conduzia sempre ao niilismo: Woyzeck chega ao ponto de matar a sua divindade. No vazio que se abre perante si, ele não vê a liberdade, o espaço de acção vasto, o leque infinito de possibilidades que outros mais tarde veriam. Porque Woyzeck ainda não aprendeu a conhecer-se a si próprio como realidade e como centro de si, fonte dos seus próprios valores. Esse homem ainda estava por nascer: deveria ser o homem moderno, mas também esse fracassará com um rotundo estrondo.


Graças à sua unicidade, Woyzeck encontra-se no limiar cruzado pelos poetas, pelos génios, pelos grandes ascetas. Mas ele nunca chega a dar o passo decisivo em frente, e o que é curioso é que nós não esperamos que ele o faça, de qualquer modo. O nosso interesse é em ver não a ascensão, mas a queda de Woyzeck. Falta-lhe o despeito do revoltado, que lhe permita emancipar-se da sociedade, e faltam-lhe o talento do artista, o intelecto do pensador, que lhe permitam transcendê-la. A sua loucura não o agiganta, apenas o diminui. O que há de verdadeiramente trágico nele é o ser um indivíduo excepcional e um homem comum. Assim, é uma figura burlesca, porque a sua solidão redunda somente em alienamento, que é despido de dignidade. A formidável energia que ele dispende em copiosas quantidades, dissipa-se no grande vazio que são os outros.

Como todo o homem comum, a sua vida é desperdício: tudo o que ele produz beneficia sempre o Outro (quer sejam outras Coisas, ou outros Seres). A sua mulher, o capitão, o cientista, o tamboreiro-mor: avatares para os espectros stirnerianos da família, do Estado, da sociedade, da ciência, do sucesso, da moral, do espectáculo, da religião, até mesmo do patronato. Woyzeck é uma marioneta operada por assombrações, um joguete de fantasmas. Para o indivíduo lúcido, o cerne da sua actualidade deverá ser sempre esse. Ele seria como o Sísifo de Camus, só que não o conseguimos imaginar no topo da montanha sorrindo, na breve pausa que antecede o rolar da rocha e o reiniciar da infinda, redundante tarefa. Woyzeck é, então, antes o Sísifo original, o Sísifo dos helenos. Ele precede a descoberta da liberdade, da revolta, da esperança; e é também aquilo que lhes sobrevive. Muitos tentaram resolver o problema universal que a existência de Woyzeck coloca: todos falharam. Apesar de toda a sua inteligência, optimismo e edificação de sistemas, no fim do corredor aguarda o rosto de Kinski, como se o símbolo inexpugnável da própria realidade: feio, sujo, extenuado, o semblante de uma besta acossada, de um velho cão batido, o semblante da eterna derrota.



O Woyzeck de Herzog na IMDB: http://www.imdb.com/title/tt0080149/

O trailer de Woyzeck no YouTube: http://www.youtube.com/watch?v=KqRgtRUkNX4





Nenhum comentário:

Postar um comentário